quarta-feira, 27 de junho de 2012

Artigo de opinião da Presidente da Câmara Municipal de Odivelas, Susana Amador, no Diário de Notícias de 27 de Junho de 2012



Na edição de hoje do Diário de Notícias, a Presidente da Câmara Municipal de Odivelas, Susana Amador, eleita pelo Partido Socialista, apresenta um artigo de opinião subordinado ao tema "Os passos perdidos da reforma do poder local" que ora se transcreve:

Em 24 de abril de 1974, Portugal era um país subdesenvolvido, com um número assustador de analfabetismo, profundamen- te desigual, de pobreza generalizada, com uma rede do saneamento básico praticamente inexistente no interior do País, onde se morria cedo e nascia em condições pouco seguras, tendo uma elevada taxa de mortalidade infantil e uma frágil saúde materna. O poder local era subserviente, nomeado pelo Governo, e uma mera correia de transmissão deste, que pedinchava verbas para fazer uma ou outra obra. Tratava-se de um poder dependente, frágil, que era o espelho do País ... um espelho triste. Com o 25 de Abril, e ao longo destes 38 anos, o País mudou, mudou profundamente e os índices de saúde materna evoluíram significativamente, as qualificações e o acesso ao ensino superior tornaram-se um crescente fértil, a par da igualdade entre homens e mulheres, bem como o acesso à segurança social e às prestações sociais na velhice.
Nessa mudança de paradigma, uma das melhores conquistas foi a legitimidade democrática do poder local, um poder que ganhou na Constituição da República e na Carta Europeia da Autonomia Local, por direito próprio, a sua autonomia e independência, fator que o tornou um pilar essencial da democracia, porque, sem poder local autónomo, sustentado e interveniente não há democracia efetiva e plena. Que não persistam dúvidas em relação a isso. Os municípios deram passos de relevo para fazermos um Portugal moderno, ao construírem as infraestruturas indispensáveis a uma razoável qualidade de vida e ao darem atenção crescente nos campos educativo, social e cultural. Os autarcas portugueses souberam desenvolver interessantes e diversificadas fórmulas de cooperação entre os partidos políticos. O poder local soube gerar consensos políticos entre os portugueses, independentemente de idades, crenças, posição partidária, estatuto social ou região de habitação.

Durante várias décadas, a população sentiu esse desenvolvimento social, educativo, desportivo, cultural e os ganhos civilizacionais que, por via do investimento autárquico (50% do investimento publico era efetuado pelo poder local), acrescentaram qualidade de vida às suas regiões. Essa população reviu-se nos seus autarcas e reconheceu o seu trabalho, ainda hoje o reconhecem - tal como atesta a recente sondagem efetuada pela ANMP. Existiu, assim, um verdadeiro "Contacto de Espíritos" na feliz aceção de Chaïm Perelman, entre autarcas e eleitores.
Persistiu, no entanto, uma forte desigualdade entre o Estado central e os municípios, tanto em recursos como em competências, que se agravou consideravelmente com a entrada em funções do atual Governo e com a sua política asfixiante no tocante às autarquias, traduzida, designadamente, num Orçamento do Estado para 2012 penalizador e no incumprimento da Lei das Finanças Locais.
De todas as alterações legais já implementadas ou em potência para serem aplicáveis às autarquias locais, parece emergir um único objetivo estratégico: gerir os municípios diretamente através do Ministério das Finanças (Lei n.º 8/2012 de 22 de fevereiro, sobre cabimentos e compromissos), esvaziá-los de compe- tências e recursos financeiros (quebra de transferências do Orçamento do Estado, em menos 119 milhões de euros face a 2011, as dívidas de mais de 60 milhões de euros do Ministério da Educação e do Ministério da Solidariedade e Segurança Social às autarquias em relação ao pré-escolar e, mais recentemente, a abusiva cativação de 5% do IMI) para que morram de forma súbita. Nesta ofensiva crescente, suprimem-se, desde já, 1067 freguesias e a curto prazo será a vez dos municípios. Mas, acima de tudo, vai definhando de forma preocupante Portugal; porque desvalorizar os municípios é ignorar as populações, as dinâmicas e empresas locais, o associativismo local e a escola pública, tão acarinhada pelos autarcas.

Está em curso uma espécie de "tsunami" antiautárquico, que arrastará tudo e todos, mesmo aqueles que continuam a pensar que "ainda não os vieram buscar".
A discussão deveria ter assentado na avaliação do quadro de competências e atribuições e noutros diplomas que são a coluna dorsal do sistema autárquico e depois deveria ter sido dirigida para os diferentes níveis de organização: freguesias, municípios, regiões administrativas. Mas, lamentavelmente, não foi isso que aconteceu, ao invés: de forma casuística, sincopada e sem estudos técnicos a alavancar opções (tornando-as assim menos habilitantes, mais opacas e pouco esclarecidas), somos todos os dias confrontados com alterações avulsas onde falta claramente um rumo.
A descentralização é, como se sabe, um processo que resulta da aplicação do princípio da subsidiariedade: que seja feito ao nível administrativo inferior - ao nível que está mais próximo de cada cidadão - tudo o que esse nível, tendo capacidade técnica, económica e humana para tal, melhor pode realizar. Permite igualmente criar condições mais favoráveis para que os conjuntos socioterritoriais locais sejam capazes de gerir capazmente estratégias de valorização das suas potencialidades. Ora, essa é, ninguém disso duvida, um desígnio essencial perante a crescente globalização das economias.
É certo que nos encontramos sob um Programa de Auxílio Financeiro Externo, que requer racionalização dos meios e escolhas ponderadas em termos de investimento. Contudo, tal programa tem sido objeto de uma interpretação extensiva que vai muito para além do mesmo, fundamentalismo esse que, salvo melhor opinião, tem constituído um erro trágico, porque paralisou a economia, impede o crescimento e porque já fez milhares de vítimas, que não vislumbram nenhuma oportunidade no desemprego que os assola ou até na fome que os assombra. Portugal quer e vai cumprir o que assumiu a nível internacional, "custe o que custar". Mas há acordos que para serem cumpridos só podem ser feitos com bom senso e adaptados ao momento que se vive. Ou esperamos nós que um pássaro voe se lhe retirarmos as asas?!
A verdade é que a ofensiva montada contra o poder local marcha de forma implacável e impiedosa, sem que a população o entenda, porque está envolvida no seu sofrimento pessoal e só despertará para a realidade em causa quando esse poder local, que sempre esteve presente para tudo, começar a dizer que não pode assegurar refeições escolares, os transportes ao movimento associativo, intervir junto dos mais vulneráveis e dos idosos em particular, asfaltar vias, apoiar financeiramente as IPSS, cuidar do espaço público, da limpeza urbana ou fazer os acessos e arranjos exteriores para obras a cargo do poder central, porque, manifestamente, lhe foram retirados paulatinamente os meios, os recursos e a agilidade legal, ou seja: princípios mínimos de autonomia gestionária, a par das receitas necessárias para assegurar despesas essenciais, inadiáveis e que nada têm de voluptuário.

Entendo que há outro caminho, e que responsabilidade e rigor financeiro não são incompatíveis com consciência social e respeito pela autonomia local.
Tal como diz Miguel Torga: "Temos sempre nas nossas mãos o terrível poder de recusar!" Recusemos, pois, todos os imobilismos e atavismos em torno de uma reforma do poder local que verdadeiramente não o é, e que nessa perspetiva será uma oportunidade perdida, sombreada por muitos passos perdidos.


Sem comentários:

Enviar um comentário

 
Site Meter